Brasil é um dos poucos países em que apostas são ilegais. Projeto estima que fim da proibição poderia gerar R$ 50 bilhões em impostos e 70 mil empregos
Os jogos de azar no Brasil foram proibidos pelo presidente Eurico Gaspar Dutra sob a justificativa moral de que o jogo é degradante para o ser humano. Até a data, a indústria de jogos empregava 40 mil trabalhadores (cerca de 0,1% da população na época) em atividades direta ou indiretamente relacionadas ao jogo – cassinos, como pólos de lazer, trabalhavam com hotelaria, restaurantes, shows de música e dança, entre outros.
Cidades inteiras sobreviviam da fortuna do jogo de azar. Poços de Caldas, em Minas Gerais, tem o Palace, que hoje funciona como hotel, mas que foi desenhado para ser um luxuoso cassino em 1920. Lambari, também em Minas, teve o Cassino do Lago, que data de 1911, mas foi desativado e em 2018 restaurado como museu. É de Petrópolis, entretanto, o primeiro lugar: o Palácio Quitandinha foi construído de 1941 a 1944 pelo empreendedor mineiro Joaquim Rolla para ser o maior cassino hotel da América do Sul.
Em estilo normando-francês, o edifício de 50 mil metros quadrados e seis andares é dividido em 440 apartamentos e 13 grandes salões. O prédio tem a cúpula do Salão Mauá, a maior cúpula em concreto do mundo, medindo 30 metros de altura e 50 de diâmetro. Em frente ao Palácio Quitandinha, existe um lago em formato do mapa do Brasil.
Em seus curtos dois anos de vida, o Quitandinha foi palco de fatos importantes, como a assinatura do tratado que determinou a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Passaram por seus salões Getúlio Vargas e Evita Perón, além de estrelas de Hollywood Errol Flynn, Orson Welles, Lana Turner, Henry Fonda, Maurice Chevalier, Greta Garbo, Carmen Miranda, Walt Disney, Bing Crosby e até o rei destronado Carol II da Romênia.
Em 1946, veio a proibição. A esposa de Dutra, Carmela Teles Leite Dutra, teria exercido forte influência para a decisão de banir a atividade, motivada por sua devoção à Igreja Católica. Dutra argumentou que a “tradição moral, jurídica e religiosa” do brasileiro é incompatível com os jogos, que eles são “nocivos à moral e aos bons costumes”, que os “povos cultos” não os toleram e que reprimi-los é um “imperativo da consciência universal”.
A reação da imprensa à época foi mais do que positiva. O jornal Correio da Manhã festejou: “Não regatearemos ao general Dutra os nossos aplausos pelo corajoso, forte e benemérito decreto extinguindo a lepra do jogo.” O Jornal do Brasil publicou que os cassinos “fazem acreditar que os problemas da vida se resolvem não pelo trabalho e pela poupança, mas por meio da sorte e do acaso, ao capricho da roleta”.
Os documentos do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que também a maioria dos senadores e deputados ficou do lado do presidente. Reunidos na Assembleia Nacional Constituinte para redigir a Constituição de 1946, o deputado Antero Leivas (PSD-RS) afirmou: “Poderá se alegar que, com o fechamento do jogo nos cassinos e nos hotéis de luxo, o turismo desaparecerá. Respondo que, se o Brasil depende da proliferação do jogo e do vício para ser conhecido e visitado, prefiro que sejamos eternamente desconhecidos”.
Segundo a biografia de Joaquim Rolla, “O Rei da Roleta”, escrita por João Perdigão e Euler Corradi, o magnata do azar nasceu em família humilde em 1988 e estudou apenas até concluir o ensino primário. Ele foi vaqueiro, açougueiro, tropeiro e construtor de estradas antes de se enveredar na área de casinos. Em uma cinematográfica reviravolta, Joaquim Rolla ganhou uma pequena fortuna em um jogo de cartas no Cassino da Urca, e foi com esse dinheiro que decidiu comprar o seu primeiro casino: o próprio Cassino da Urca.
A obra de João Perdigão e Euler Corradi narra que Joaquim Rolla negociou com o governo um contrato que lhe assegurava a indenização no caso de o jogo de azar ser proibido em território nacional. Este acordo, entretanto, não foi cumprido por Dutra tampouco pelos presidentes que o seguiram.
74 anos de moralismo
Há 28 anos tramita na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL 442/1991) de autoria de Renato Vianna (PMDB/SC), atualmente sob relatoria de Guilherme Mussi (PP-SP), que busca regulamentar práticas que atualmente são entendidas como contravenções. O PL não trata apenas de roletas, cartas e dados nos cassinos, mas também do jogo do bicho, bingo, loterias, jóqueis, apostas de cotas fixas e até mesmo apostas online. Apesar de datar de 1991, o projeto foi apensado diversas vezes com complementos que o atualizaram.
Atualmente na situação de Pronta para Pauta no Plenário (PLEN), basta que o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) decida para que a apreciação seja iniciada pelos congressistas. Entretanto, 70 anos depois, o tema ainda enfrenta severa oposição moral religiosa, desta vez por parte da bancada evangélica.
Jogos de azar – ou “jogos de fortuna”, como preferem seus defensores – são proibidos em 37 dos 193 países-membros da Organização das Nações Unidos (ONU). A maior parte das nações que veta o jogo é de maioria muçulmana, sendo que as três exceções são: Cuba, Islândia e Brasil. O estudo técnico que foi realizado para basear o PL 442/91 estima que, caso regulamentado, o Brasil poderia recolher R$ 50 bilhões em impostos e gerar 70 mil empregos direta e indiretamente.
Porém, o assunto não é simples. Outro projeto de lei, este de origem no senado (Projeto de Lei Suplementar 186/2014), de autoria de Ciro Nogueira (PP), também propõe regulamentar o jogo. Em nota técnica, o subprocurador-geral da República Carlos Vilhena afirmou que o projeto “cria novos e poderosos mecanismos para a lavagem de dinheiro”.
O projeto mais antigo se preocupou em criar mecanismos para coibir a lavagem de dinheiro. Segundo a redação do projeto, a empresa licenciada para funcionar como cassino se submeteria ao sistema de gestão de controle com autorização governamental do Estado e União. O consórcio responsável pelo controle e acompanhamento das apostas e pagamentos de prêmios em tempo real seria estadual, enquanto a investigação e julgamento de crimes eventualmente cometidos se daria no âmbito Federal.
Segundo técnico entrevistado que participou da elaboração do texto, esta é a maneira que países desenvolvidos atualmente utilizam para impedir a lavagem de dinheiro. Em países cuja experiência com jogos foi bem sucedida, as casas licenciadas têm a obrigação de usar em seu caixa um dispositivo digital que permite monitoramento em tempo real. Foram estudadas e levadas em consideração para a redação do projeto os modelos adotados nos Estados Unidos, Itália, Portugal e na cidade chinesa de Macau.
Outro desafio é a luta dos ludopatas – viciados em jogos de azar que praticam a atividade de maneira compulsiva ou patológica. À lei de 1991 foi apensado um capítulo para tratar do tema. A lei propõe a criação de um cadastro de ludopatas. Os nomes poderiam ser incluídos em uma relação de pessoas com histórico de jogar descontroladamente por iniicativa da próprio pessoa, voluntariamente, por parentes até segundo grau ou pelo Ministério Público. Estes nomes cadastrados não poderiam jogar. A ideia é que a lista de nomes estaria disponível online de forma automatizada para incapacitar os ludopatas de engajarem em atividades de azar.
Há também o obstáculo da dificuldade de dar amparo legal a todas as atividades de azar, que nunca deixaram de ser praticadas, apenas migraram para a ilegalidade. Hoje, é fácil e acessível realizar apostas em plataformas online hospedadas em outros países. O site Bet365 tem milhões de acessos diários de todo o mundo, incluindo o Brasil, e realiza apostas nos esportes tênis, tênis de mesa, basquete, corrida de cavalo, cricket, dardos, e-sports, hóquei no gelo e voleibol.
Pelo site bet365, um brasileiro pode receber o prêmio máximo de 1 milhão de libras inglesas (R$ 6.585.128,00). Todos os tributos deste prêmio ficariam retidos no país que sedia a empresa, a Inglaterra. Não há mecanismos para impedir que um brasileiro faça apostas desta maneira.
Formas mais tradicionais de aposta, como o jogo do bicho, jamais deixaram de ser realizadas e tornaram-se um fator cultural em alguns estados brasileiros. Atualmente entendido como uma contravenção, os trabalhadores do bicho não têm previdência social, direitos trabalhistas, e não podem se proteger de contraventores que cometem crimes mais graves. “A intenção da lei é criar um ambiente de regularidade, colocar o ilícito dentro da formalidade para tributar-se, criar emprego e segurança para essas pessoas”, afirmou o técnico envolvido na elaboração da PL 442/1991.
Como seriam os novos palácios
A exploração dos jogos de fortuna em cassinos, segundo a PL 442/1991, se daria da seguinte forma: uma empresa interessada em adquirir as licenças governamentais teria de se comprometer a investir na atividade um volume de dinheiro que chega à casa dos bilhões. A cota é propositalmente difícil de ser atingida para evitar a proliferação dos cassino, o que facilitaria o acompanhamento rigoroso da distribuição dos prêmios e dificultaria a lavagem de dinheiro.
Além de atingir a cota, um investidor teria também de se adequar à distribuição dos estabelecimentos em função do número de habitantes no estado. Estados com população de até 15 milhões de habitantes poderiam possuir apenas um cassino. Estados com 15 a 25 milhões de habitantes, dois cassinos. Acima de 25 milhões de habitantes, três cassinos ou mais. A pena para o descumprimento das prerrogativas de segurança fiscal e de responsabilidade social seria rigorosíssima quando se considera o alto investimento feito para atingir a cota obrigatória: a perda da autorização de tocar os negócios do jogo de fortuna.
Desta forma, quando se pensa em Goiás, que poderia abrigar apenas um cassino, a cidade que obviamente surge como candidata é Caldas Novas. O secretário de Turismo da cidade, Ivan Garcia, afirma que gestores da cidade vivem em constante animação e esperança da possível legalização do jogo. “É um sonho que nós alimentamos porque sabemos que as cotas são caríssimas e que trariam investimento e desenvolvimento para nossa região. Caldas Novas e Rio Quente já atraem turistas do lazer, mas com um cassino, viriam outros tipos de turistas de todas as partes do Brasil e do mundo”, afirma Ivan Garcia.
Também representa a cidade a deputada federal Magda Moffato (PL), que encampa a luta pela regulamentação dos jogos de fortuna. “Seria muito importante para um país com potencial turístico do Brasil termos mais opções de lazer”, diz a deputada. Magda Moffato explica que o temor de que cassinos venham a tornar-se antros de pecado e contravenção é injustificável, pois projeto 442/1991 garante que os espaços seriam frequentados por pessoas conscientes e socializadas.
“Não enxergo os cassinos como aquilo que a bancada evangélica expõe. Eles acham que vai ser prejudicial para a população de baixa renda, que gastaria todos seus salários com isso”, diz a deputada. “A loteria da Caixa Econômica Federal prejudica muito mais esse segmento, pois há probabilidade ínfima de ganho e é visto pelas pessoas como possível salvação financeira. É muito diferente de um cassino, entendido como lazer, como um passeio”.
Magda Moffato também chama a atenção para a cadeia produtiva envolvida na regulamentação da atividade: “Qualquer cassino engloba shows, eventos, convenções, restaurantes. Precisamos de mais empregos no país; e estes empregos têm baixo consumo, não poluem, entregam apenas serviço e atraem dinheiro extrangeiro”.