Duas safras espetaculares consecutivas são raras em Bordeaux. Em 120 anos, a dobradinha só foi vista quatro vezes. Provamos as de 1928-1929, considerada a melhor dupla, de 12 grandes châteaux
O que podemos chamar de “safras gêmeas”, duas grandes safras em anos consecutivos, é um fenômeno que aconteceu poucas vezes na história de Bordeaux. Nos anais recentes, embora seja tema de controvérsias, somente quatro vezes: 1899-1900, 1928-1929, 1989-1990 e 2009-2010.
Destes pares, o mais reverenciado é, sem dúvida, 1928-1929, pelos motivos a seguir. Em uma raríssima oportunidade, uma prova particular (pela qual devo agradecer a generosidade de quem me proporcionou este momento e comigo o compartilhou), degustei 24 grandes Bordeaux de 1928 e 1929.
Como foram estas históricas safras?
1928 – “Tanino” é a palavra-chave para entender 1928. Este foi um ano muito quente e seco, com colheita em 18 de setembro. Os vinhos, em geral, tiveram muita cor e sabor, e extremamente tânicos, em especial os vinhos com mais Cabernet Sauvignon. Os vinhos da margem direita (com mais Merlot), resultaram um pouco menos agressivos, ainda assim bem mais tânicos que em outras safras. Quando lançados, os 1928 eram monolíticos e imbebíveis. Os prognósticos da época eram de que precisariam de 30 anos para ficar prontos. Na realidade, começaram a ficar no ponto somente após 50 anos, e mesmo hoje, quase 90 anos depois, alguns ainda estão austeros.
1929 – Ano ainda mais quente e seco que 1929, o mais quente em 30 anos. Ao contrário de 1928, o amadurecimento foi mais longo e lento, com colheita mais tardia, em 26 de setembro. O resultado foram vinhos extremamente elegantes, concentrados, alcoólicos para a época (13%), opulentos, maduros e redondos, com qualidade e estilo consistentes em todas as sub-regiões de Bordeaux. Prognósticos da época apostavam que 1929 não seria um ano de vinhos longevos.
Profundamente diferentes em estilo, as safras gêmeas de 1928 e 1929 são, no entanto, até hoje reverenciadas pela qualidade e longevidade.
Fama tardia
Curiosamente, estes monumentos líquidos ficaram encalhados nas prateleiras quando chegaram ao mercado e só começaram a construir sua fama duas décadas depois. Lembrem-se de que, em 1929, o mundo passava pela mais notória crise econômica da história. Quando a economia começou a se recuperar, uma década depois, eclodiu a Segunda Guerra Mundial, e os vinhos ficaram bem mais tempo estocado. Quando foram finalmente descobertos, estavam começando a ficar bebíveis e seus preços dispararam à medida queforam criando fama. Hoje, essas são duas das safras mais raras e procuradas (atenção, infelizmente também são duas das mais falsificadas).
A prova
Nunca dei tantas notas 100 em uma mesma degustação. Vários dos vinhos listados abaixo entram na memória para não mais sair, na lista dos melhores da vida. Há muito mais aqui do que o deslumbramento de provar vinhos raros, famosos e caros. Estes são vinhos realmente espetaculares, feitos em uma época de outras viticultura e enologia, sem tanta tecnologia. Simplesmente, grandes vinhos, feitos de forma simples, por enólogos competentes, em duas grandes safras.
É sempre bom lembrar que em vinhos de muita idade como estes há uma grande variação entre cada garrafa. Foi o caso do Lafite 1928, por exemplo. Já provei-o antes, da mesma safra, e estava excepcional, nota 100. A garrafa aqui abaixo analisada estava bem abaixo em qualidade.
São vinhos realmente espetaculares, feitos em uma época de outras viticultura e enologia, sem tanta tecnologia
Château Latour 1928
Excepcionalmente bem proporcionado. Macio, gordo, de grande complexidade, ainda com taninos marcados, firme. Achei aqui uma rara combinação: um vinho extremamente complexo, estruturado e, ao mesmo tempo, fresco, fácil de beber, descendo fácil. Delicioso. Existe uma ótima expressão em inglês para descrever este vinho: mind blowing (surpreendente).
Nota: 100+
Château Latour 1929
Colocado lado a lado com seu irmão, o Latour 1928, este se mostrou como uma outra versão da perfeição engarrafada. O 28 estava mais potente e este, mais magro e elegante, com um finesse inigualável! Perfumado, delicioso, com muita madeira aparecendo (quem diria) e notas terrosas, de cogumelos, balsâmicos, cedro, tabaco.
Nota: 100
Château Montrose 1928
Embora sem defeitos e ainda ótimos vinhos, os Montrose foram os mais fracos da prova, junto com os Ducru-Beaucaillou (e os Lafite, que eram claramente más garrafas). Este 28 estava seco, sério, com mineral intenso no nariz, mas discreto no geral, com notas de couro, musgo, ferro.
Nota: 94
Château Montrose 1929
Ao lado do Montrose 1928, ao contrário de prognósticos, mostrou-se mais austero que este, seco, com paladar poderoso, taninos presentes, notas de coco, couro, carne, especiarias.
Nota: 93
Château Mouton Rothschild 1928
De cor marrom, muito escura. Sem aromas no início, depois abriu-se bem etéreo, com notas de especiarias, fruta bem madura, densa, ameixas, grafite, couro, ervas. Paladar firme, denso, carnudo, potente, seco. Ainda deve ir mais longe e viver muitos anos.
Nota: 99
Château Mouton Rothschild 1929
A cor foi uma surpresa, bem clarinha, um dos mais claros e ao mesmo tempo um dos mais perfeitos entre os 28 e 29 provados. Aroma intenso, etéreo, com notas de trufas, couro, tabaco, soja, terra úmida, defumados. Paladar seco e poderoso, com taninos presentes, boa acidez, longo. Perfeito, elegante e imponente, pronto, não deve evoluir mais, chegou a seu auge.
Nota: 100
Château Cheval Blanc 1928
Incrivelmente jovial, de cor granada escura, com reflexos alaranjados. Aromas potentes e complexos , com notas de defumados, terra molhada, flores secas, cedro, tabaco, café, e (surpreendentemente) muita madeira. Paladar estruturado e sedoso, gordo e macio, longo e profundo. Mais que perfeito, arrebatador.
Nota: 100+
Château Cheval Blanc 1929
De cor muito clara, aromas etéreos, com notas de remédio, iodo, frutas secas, kirsch, alguma oxidação, parece um Porto Tawny na cor e no perfil de aromas. Aparentemente já sentindo a idade, mas ainda um vinho excelente, embora bem abaixo do Cheval Blanc 1928.
Nota: 94
Château Cos d’Estournel 1928
Cor escura em tons de granada alaranjado. Aroma intenso e rico, com notas de ameixa seca, cogumelos secos, terra molhada, tabaco. Paladar seco, potente, firme, vibrante e fresco, com acidez muito boa, longo, ainda com vida pela frente.
Nota: 99
Château Cos d’Estournel 1929
De cor mais clara e mais pronto que o 1928, cor em tons alaranjados, aromas elegantes, com notas de flores secas, especiarias doces, como alcaçuz. Paladar de médio-bom corpo. Um vinho excepcional, de grande elegância, complexidade e maciez. Por sua maciez e frescor, desde fácil. Dá vontade de beber de golão (quem dera…).
Nota: 98
Château Ducru-Beaucaillou 1928
De cor escura, em tons granada com reflexos violáceos. Aroma etéreo, não muito expressivo, bastante evoluído e com boa complexidade. Paladar de bom corpo, com taninos ainda firmes, um pouco curto. Embora sem defeitos, é menos exuberante que os demais 1928 provados, ainda assim um belo Bordeaux maduro.
Nota: 92
Château Ducru-Beaucaillou 1929
De cor clara e tons amarronzados, como um chá preto. Aroma etéreo, de pelica, pele de salame, chá, especiarias. Paladar seco e elegante, magro, ainda perfeito, mas não deve evoluir mais, já sente a idade.
Nota: 93
Château Pichon Lalande 1928
Os dois Pichon Lalande, 1928 e 1929, foram os mais semelhantes entre si em toda a prova, com ligeiro maior corpo para o 28 e ligeira maior elegância para o 29. Este 1928 se mostrou de cor escura, aromas intensos, com notas de café, tostados, defumados, especiarias, carne. Paladar encorpado, com taninos e acidez vivos, longo e profundo. Grande vinho.
Nota: 99
Château Pichon Lalande 1929
Muito semelhante ao 1928, este com cor menos escura, em tons granada com reflexos alaranjados, aromas de frutas doces, com notas etéreas, couro, chá, mineral terroso. Paladar estruturado e elegante, macio e pronto, com textura densa e bom frescor. Excepcional.
Nota: 98
Château Haut-Brion 1928
Um dos vinhos mais impressionantes da prova. Muito escuro, opaco, quase negro. Aroma ainda com muita fruta, muito madura, ameixas em compota, café, cacau amargo, madeiras, alcaçuz. Paladar monumental, seco, quase um Porto Vintage, muito denso com taninos volumosos e ainda bem presentes. Espetacular. Tivemos sorte com esta garrafa, já que uma outra prova, em outra ocasião, provamos um Haut-Brion 28 oxidado.
Nota: 100+
Château Haut-Brion 1929
Cor muito escura. Aroma intenso, complexo e etéreo, com notas de geleias, frutas secas, cana-de-açúcar, madeiras, musgo, ervas. Paladar profundo, denso, gordo, tânico, gritando força, muito vivo, com muita vida pela frente.
Nota: 100
Château Lafite Rothschild 1928
De cor clara, turvo, muito etéreo, já decaindo, desequilibrado, com alguma oxidação e notas off. Uma lástima esta má garrafa, já provei este mesmo vinho ano passado e estava espetacular.
Nota: sem nota
Château Lafite Rothschild 1929
Uma garrafa não das melhores, vinho tímido, aroma contido, paladar não muito equilibrado, com taninos presentes, acidez volátil aparece um pouco, ainda assim interessante.
Nota: 90
Château Margaux 1928
Talvez o mais perfeito de toda a prova de 1928-1929. Cor escura, mas não muito, em tons de granada. Aroma intenso, complexo, de extrema elegância, com notas de especiarias, frutas que ainda guardam frescor, flores, madeira integrada. Paladar firme e estruturado, de extrema elegância, leveza e equilíbrio, macio, com taninos finíssimos ainda presentes, com boa acidez, longo. Surpreendentemente jovial, parecia um vinho 50-60 anos mais jovem.
Nota: 100+
Château Margaux 1929
De cor clara, granada-alaranjada. Aroma de incrível finesse, grande pureza, com notas de flores, caramelo, frutas secas, nozes, cerejas, cedro. Paladar delgado, seco e de textura macia, densa, firme e ao mesmo tempo incrivelmente delicado. Simplesmente perfeito, com toda a elegância dos melhores Margaux.
Nota: 100
Château Gruaud-Larose 1928
A garrafa estava com o nível de líquido baixo, no ombro, mas o vinho se mostrou perfeitíssimo, um dos melhores da prova. Cor escura, marrom. Aroma complexo, com notas de couro, ameixa passa, chá preto, tabaco. Paladar potente, com taninos e acidez bem presentes, rico e longo, com textura e profundidade. Impressiona! Este Château às vezes surpreende, se equiparando aos 1er Cru.
Nota: 100
Château Gruaud-Larose 1929
Entre claro e escuro, granada-alaranjada. Aroma complexo e elegante, frutas bem maduras, doces, muitas especiarias, chá, cogumelos secos. Paladar seco e macio, de médio corpo, com uma nota de amargor no fim de boca, já sentindo a idade e bem inferior ao 1929.
Nota: 92
Château d’Yquem 1928
De cor clara para sua idade, dourada e brilhante. Aromas típicos dos melhores Sauternes, com um plus de complexidade e evolução, com notas de resinas, verniz, mel, geleia de damascos. Paladar cremoso, bastante doce, mas com incrível acidez, aparentemente tem ainda décadas de vida pela frente e deve superar o 1929.
Nota: 99
Château d’Yquem 1929
Provado ao lado do 1928, tem cor totalmente diferente, muito mais escura, marrom, parecendo um óleo de máquina. Aroma rico, com notas de caramelo, toffee, resinas, verniz, frutas tropicais em forma de geleia, mel. Paladar profundo, textura oleosa, bastante doces e jovial, com ótima acidez. Seu frescor não corresponde à evolução indicada pela cor. Extremamente longo, com incrível persistência. Perfeito, um grande Yquem, imponente, elegante e complexo.
Nota: 100
Impressões gerais
Os vinhos estavam incrivelmente vivos, com taninos e acidez, e alguns, para minha surpresa, com muita madeira. Poucos tinham informação de álcool no rótulo. Dos que tinham, o número era 12% ou 13% (alto para a época).
No geral, os 1928 se mostraram melhores que os 1929. Como esperado, os 1928 estavam mais encorpados e os 1929, mais elegantes e alcoólicos. Esperávamos que, das 24 garrafas, de 30% a 50% estivessem perdidas, decadentes. Surpreendentemente, apenas uma estava e foi desclassificada, o Lafite 28.
Dentre os 24 vinhos destaco estes seis:
- Château Latour 1928
- Château Mouton Rothschild 1929
- Château Cheval Blanc 1928
- Château Haut-Brion 1928
- Château Margaux 1928
- Château d’Yquem 1929
Curiosidade 1: ao fim da prova foi aberta uma garrafa de Pétrus 1970 double-magnum (3 litros). O Petrus 1970, 40 anos mais novo que os demais vinhos da prova, nos pareceu bem mais pronto…
Curiosidade 2: em uma outra prova, cerca de um ano antes, degustei muitos destes mesmos vinhos, das mesmas safras, só que em garrafas magnum (1.500 ml). Para minha surpresa, no geral, as garrafas padrão se mostraram melhores que as magnums. Para registro, nesta outra prova, de magnums, os campeões foram o Pétrus 1929 e o Lafite 1928.