Novos terroirs invadem regiões como a Patagônia Chilena para se protegerem das secas e das ondas de calor
O aquecimento global afundou Nova York, ilhou ursos brancos em pedacinhos flutuantes de iceberg, ardeu Austrália e Califórnia em chamas. O mapa mundial do vinho também foi afetado, com os produtores fugindo das zonas quentes e semidesérticas e buscando lugares mais frescos e úmidos para plantar vinhas. No seco norte do Chile, por exemplo, em Limán e Elqui, o clima extremo já fez algumas vinícolas fecharem. Enquanto isso, os espumantes do sul da Inglaterra (terra de invernos que congelam os ossos), viraram coqueluche – algo impossível dez anos atrás!
Se você ainda tem preconceito contra os vinhos chilenos, repense. Os rótulos industriais, simplórios e baratos ainda vendem como água nos supermercados e seguem superpopulares, mas, paralelamente, os melhores produtores do país estão escrevendo um novo capítudo na história do Chile. Na última década lançaram muitos vinhos capazes de ganhar, às cegas, de míticos rótulos franceses. Como? Fugindo do calorão. É dificílimo alcançar os mais altos níveis de qualidade em regiões quentes e secas demais, como os vales centrais do Chile em tempos de aquecimento global. A solução para os enólogos mais respeitados de lá foi começar uma corrida pela compra de terras mais frescas, em encostas ou bem ao Sul de Santiago, onde antes quase ninguém plantava vinhas. A Casa Silva, com sede no Vale de Colchagua, foi a pioneira. Plantaram sauvignon blanc, pinot noir e riesling à beira do Lago Ranco no Vale de Osorno, 900 km ao Sul de Santiago, na patagônia chilena. Seu espumante extra brut foi elogiadíssimo pelo Ferran Centelles, um dos mais reputados sommeliers do mundo.
Outra vinícola gigante, a Montes, sediada no mesmo Vale de Colchagua, foi mais longe. O proprietário Aurélio Montes e seu filho homônimo resolveram comprar terras em uma ilhota no arquipélago de Chiloé, quase inabitada, onde faz frio boa parte do ano. Especialistas dizem que o limite máximo onde dá para produzir vinhos no Hemisfério Sul é o paralelo 42 S, que passa justamente ali. Com isso, aumenta o risco de geadas na primavera e de dificuldade de amadurecer as uvas por falta de sol quente, mas os Montes estão empolgados com o desafio. “O futuro do Chile é o Sul”, afirma Montes pai. A primeira safra será vendida em 2021. O duo também faz um tinto leve e delicioso no Vale de Itata – a zona mais hypada do Sul – com a uva Cinsault, a mais típica dali. O surgimento desse e de tantos outros vinhos frescos, com fruta e acidez vivas em Itata é uma verdadeira revolução e tem muito a ver não só com o clima mais frio e úmido, como também pelo resgate de uvas que eram até há pouco desprezadas. A país, trazida pelos primeiros colonizadores, foi desprezada e vista como inferior por séculos, e em Itata vive o maior revival. O grande mestre em vinificar essas uvas é o famoso enólogo Pedro Parra, que não se acanha em falar mal dos vinhões produzidos em volume e que tentam copiar os tintos de Bordeaux. Tudo o que querem ele e seus vizinhos em Itata – inclusive os super em voga irmãos da De Martino – é o contrário: vinhos que sussurem no ouvido ao invés de berrar em alto-falante.
Os que estão à frente dessa migração ao Sul, não por coincidência, se destacam também pelos cuidados com o meio-ambiente. Especialmente a gigante VSPT, dona de várias vinícolas pelo país afora, que investiu milhões em painéis solares e bodegas sustentáveis, além de ensinar famílias Mapuche a cuidar de pequenas parcelas plantadas com pinot noir. O vinho, batizado Tayu, foi lançado este ano.
Se como muitos a VSPT escolheu a pinot noir, não é por acaso. Ela e a chardonnay – as duas uvas principais da Borgonha, na França – vão superbem em climas frescos. Esse é o atrativo principal para enólogos como o renomado Francisco Baettig, mais conhecido por seu trabalho para a vinícola Errázuriz, onde criou o icônico Seña, um dos tintos mais premiados do continente. Em seu pequeno projeto pessoal, ele escolheu o Vale de Malleco para plantar, em 2013, 15 hectares de chardonnay e pinot noir. Ali pratica a viticultura dos seus sonhos, não muito diferente do que se faz na Borgonha, terra santa que influenciou tantos outros desses revolucionários que estão mudando – e melhorando ! – os vinhos do Chile.