Dirceu Scottá: “Não adianta ter excelente qualidade se o custo é elevadíssimo”

por Regina Bochicchio

DIrceu Scottá

Dirceu Scottá assina os premiados vinhos da vinícola brasileira Dal Pizzol

Enólogo de formação e há mais de 26 anos responsável por assinar os premiados vinhos da vinícola brasileira Dal Pizzol – nome da família que toca o negócio e da qual ele se diz integrante “por osmose” –, Dirceu Scottá, 43 anos, não é só um expert na arte de elaborar e degustar a bebida. Ele passeia do vinhedo à sua segunda casa, a vinícola, até o mercado de vinhos. Ex-presidente do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), do qual esteve à frente no biênio 2016-2017, já comandou a União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra) e foi presidente da Associação Brasileira de Enologia por duas gestões, no período de 2004 a 2007. Scottá defende a inegável qualidade do vinho brasileiro hoje e explica o motivo pelo qual o povo da terra não valoriza a bebida que tem –  preconceito pautado em ecos de um tempo que já se foi. Aproveita para criticar o chamado ‘custo Brasil’, que eleva os preços ao produtor e, consequentemente, ao consumidor. E alerta aos compradores de importados baratíssimos de plantão: aquilo que parece nem sempre é. O enólogo, que esteve em Salvador  para apresentar os rótulos da Dal Pizzol a empresários e amantes da bebida, conversou com a Muito entre uma taça e outra de vinho branco e sentenciou que o Nordeste é o grande mercado para o consumo do bom vinho brasileiro.

O Nordeste é um mercado promissor para a cultura dos vinhos?
Eu vejo no Nordeste um grande mercado, talvez para reverter o preconceito que existe no consumidor brasileiro, porque o Nordeste tem muito turista. O turista quando viaja e vai para qualquer local, ele não quer vir para o Brasil e tomar um vinho argentino, do Chile ou do Uruguai. Ele quer tomar um vinho produzido no Brasil.  E hoje não resta dúvida de que o Nordeste brasileiro é a porta de entrada de grande parte dos turistas e é um local que está crescendo muito a venda do vinho brasileiro.

Por que existe preconceito do brasileiro com o vinho brasileiro?
Se a gente voltar anos atrás, o vinho brasileiro era, de certa forma, um pouco deficiente em termos de qualidade, não estava preparado, não se trabalhava naquilo que agora se chegou à conclusão que é a questão do vinhedo, principalmente. As  nossas vinícolas hoje têm a tecnologia que a gente encontra em qualquer parte do mundo.  Por isso que de um tempo para cá se começou a  refazer os vinhedos que os produtores tinham, mas com uvas selecionadas, importadas da França,  sem doença, com variedade correta, com enxerto correto. Eu digo sempre: 80% dos vinhos se fazem no vinhedo.

Já ouvi que 50% do vinho está no vinhedo. Por que 80%?
Oitenta por cento do vinho se faz no vinhedo. Vinte por cento só são a mão do enólogo, mais a tecnologia de cantina. O enólogo não faz milagre.  O enólogo está aí para auxiliar a matéria-prima, que é a uva, a se transformar em bom vinho. Ele pode, sim, vacilar, e no lugar de transformar em bom vinho, transformar em um médio ou mau vinho. Agora, tudo vem do vinhedo. A interação entre enólogo e agrônomo, ou enólogo e técnico agrícola ou o próprio enólogo no vinhedo é fundamental. Não adianta ficar no vinhedo esperando que a uva chegue e depois fazer a operação. Ele tem que entender lá na terra, onde nasce o vinho. Não posso ficar esperando a uva chegar conforme o pessoal do vinhedo colhe, tenho que estar lá intervindo nisso.

Voltando ao preconceito com o vinho brasileiro…
Toda essa mudança que aconteceu na área da viticultura do Brasil fez com que melhorasse bastante a qualidade do vinho. Mas a imagem na cabeça das pessoas ficou. E a imagem principalmente de uma época em que se faziam grandes volumes, se tinha vinho ruim… Um outro exemplo para você ter ideia: vinho rosé cresce o consumo no mundo todo, neste momento. Aqui no Brasil, não. E por que acontece isso? Vamos voltar no tempo um pouco. Nós tínhamos vinho rosé, mas era  uma sobra de tinto com uma sobra de branco, com o que tinha de pior na vinícola, juntava os dois, jogava açúcar e colocava no mercado. Era um rosé de baixa qualidade suave. A pessoa tomava, dava dor de cabeça, não gostava. Daí pensava: ‘Detesto vinho rosé, detesto vinho brasileiro’. Essa imagem foi construída assim. O vinho da garrafa azul é outro exemplo que podemos pegar o efeito contrário. O Liebfraumilch, que era conhecido como o vinho alemão da garrafa azul, que nem era produzido na Alemanha, era produzido no norte da África, vinha para cá com rótulo de vinho alemão. Doce, péssima qualidade. Esse vinho da garrafa azul acabou com a imagem do vinho alemão no Brasil. Por mais que ele tenha feito outro movimento: porque muita gente começou a tomar vinho através desse vinho. Então, de alguma forma, tem algo de bom (risos). Ou seja,  o brasileiro vem com esse preconceito por causa desse momento, quando se colocava no mercado qualquer vinho.  Mas esse mercado de vinhos  é um mercado único, que nós temos mas que realmente não  vai se voltar para os vinhos finos. Porque quem está acostumado a isso vai continuar com isso. O bebedor de vinho de uva americana é mais difícil de migrar para o vinho fino. Sem falar que quando ingressam os importados, ingressam principalmente os vinhos argentinos, o Chile com preços mais em conta…

Porque os acordos comerciais entre países facilitam, não é?
O Chile não está no Mercosul, mas ele foi beneficiado por um acordo inicial, bilateral, de troca… na época eu lembro que foi uma briga lá na Serra Gaúcha porque a empresa que produzia ônibus e a Random, que produz carretas, queriam vender para o Chile. A moeda de troca foi abrir o mercado para o vinho chileno. Então, nós mesmos na Serra fizemos isso. O Chile, então, desde aquela época, não tem nenhuma taxação, mas entra com vinhos totalmente diferentes no Brasil. Condições totalmente diferentes de produção e com qualidade e preço baixo. Isso também ajudou a manter esse preconceito. Fora isso, o vinho brasileiro quando tem qualidade não consegue ter o mesmo preço dos vinhos importados.

Por que o vinho brasileiro é tão caro? Tributação?
Tributação é uma parte. Mas tem o famoso custo-Brasil. E desse nós não conseguimos fugir. Não se tem benefício fiscal algum, pelo contrário, se tem acréscimo de mais impostos. O nosso custo nos inviabiliza, não vamos competir no mesmo preço, não tem como. O custo da uva já é maior do que o custo da uva em qualquer região do mundo.

O estado do Rio Grande do Sul incentiva porque pesa no PIB estadual. Mas o governo federal não entendeu até hoje a indústria do vinho?
O governo federal  não olha para culturas menores. Não é só a questão da uva, do vinho. A gente tem ‘n’ culturas que também estão sofrendo. A gente olha o  agronegócio como se fosse só a soja, a carne, arroz, milho…

O vinho aqui também não é considerado alimento, e a tributação pesa para os considerados supérfluos, bebida alcoólica…
Hoje, quase 57% do valor de vinho que você paga é imposto. Entre diretos, indiretos e assim por diante. Lá fora, o máximo é 20% e ainda com inúmeros incentivos.

O crescimento do e-commerce de vinhos, dos que trabalham com importados e ofertam preços baixos – como  Wine (evino), Vinho Fácil… –, tem impacto de que forma no mercado brasileiro?
Eu diria que hoje no Brasil se tem… talvez seja uma expressão um pouco forte, mas se tem um segmento de mercado, ou dois ou três segmentos, que estão matando outros. Ou seja, que estão asfixiando outros. No caso dos vinhos, são os e-commerces, as importações diretas de redes de supermercados que buscam lá fora marcas próprias. Qualidade? Tem de bons a muito ruins. Mas de preço baixíssimo. Isso hoje é muito forte. Consequentemente, e eu venho dizendo isso, o Brasil virou a grande lixeira dos vinhos. Porque se tinha excedentes de produção mundial que grande parte vinha para o Brasil, exatamente porque eles vão lá fora buscar o que tem de mais barato.  E o consumidor daqui, que tem a mentalidade de que tudo importado é melhor do que é nacional,  aliado a um preço baixíssimo, vai lá e pensa: ‘Estou tomando vinho importado e estou bem’. Outra: a gente sabe que nós temos um baixíssimo consumo per capita de vinho, na faixa de dois litros [ano]. São poucas as pessoas que realmente conhecem para dizer: estou tomando vinho de qualidade ou não. Muitas vezes, está tomando um vinho qualquer.

Então, nós chegamos ao seguinte ponto: vinho bom é o vinho de que se gosta? Como muitos da indústria do vinho costumam dizer?
No mundo do vinho acho que o conhecimento é indispensável. Tanto é que eu estava lendo uma reportagem ontem, de um encontro de enólogos italianos, dizendo o seguinte:  só vamos reverter – porque na Europa, no mundo todo, vêm sendo reduzido os índices de consumo per capita –, nós só vamos reverter essa queda de consumo se nós investirmos na cultura. Ou seja, quem toma vinho tem que conhecer um pouco mais. Eu acho que concordo com eles. Porque o vinho de qualidade está totalmente do outro lado do fast-food. Concordo que a pessoa que bebe vinho deve beber em qualquer momento. Mas só que hoje não é isso. O vinho lhe proporciona  ter um tempo para almoçar, para jantar, vinho bebido com moderação. Muitas vezes o que acontece é que no corre-corre do dia a dia, a nossa cabeça é invadida por não consumir vinho no almoço, por não perder cinco minutos.  Tem que começar a mudar um pouco os hábitos, mudar a questão cultural disso tudo. Por que que se consome tanta cachaça, se consome mais cachaça do que leite neste país? Porque industrialmente se diz o seguinte: o Brasil é de clima quente, não se pode beber tanto vinho. Espera aí: cachaça tem muito mais álcool do que o vinho!

Os próprios e-commerces fomentam a ideia do consumo nos momentos…
Fomentam. Tem muita gente que se associou em vários e-commerces, começou a receber vinho, mas acho que isso tudo é um ciclo. Porque tem vários que começaram, foram melhorando o paladar e que hoje dizem: bom, não vale mais a pena porque o vinho que eu estou recebendo não vale mais a pena. Já ouvi muito isso. E outra: ninguém consegue fazer milagre no preço. Existe um vinho português sendo comercializado a R$ 9,90 a garrafa em uma rede de supermercado! Mas por isso eu digo: a garrafa, o rótulo, a rolha, a cápsula… tudo isso tem custo, seja aqui, na Itália, na Argentina, em Portugal e no Chile, então… não existem grandes milagres para se chegar a R$ 9,90! Os excessos de produção, sim. Mas  em nível mundial pode-se dizer que os volumes que se tinha de excedentes diminuíram bastante. Consequentemente,  a gente tem acréscimo de preços e isso vai chegar aqui também.

É uma oportunidade para o mercado brasileiro?
Seria a oportunidade de o governo brasileiro olhar de outra forma para o produtor local e incentivar. Mas eu acho que não podemos parar por aí. Ou seja, é uma luta diária. Uma parte foi feita, que é a melhoria da qualidade e dizer que nós podemos competir de igual para igual. Porque hoje a gente manda para concurso as garrafas. De oito a dez anos são mais de dez mil premiações em concursos nacionais e internacionais. E não só de espumantes. De brancos, tintos, espumantes, enfim.  O que nos falta é exatamente isso: conseguimos evoluir na qualidade, agora temos que aumentar o volume deste produto de qualidade e, consequentemente, reduzir o custo para chegar ao consumidor. Não adianta ter excelente qualidade se o custo é elevadíssimo, porque daí a gente não consegue chegar à mesa do consumidor.

E a qualidade dos vinhos produzidos no Vale do São Francisco? Como você avalia?
O Vale do São Francisco é algo muito particular. Quando a gente viaja o mundo, quando vai para esses concursos e diz que aqui no Brasil tem uma região que pode colher uva todos os dias do ano, ninguém acredita. O Vale do São Francisco terá os seus vinhos, os vinhos com as suas características, do terroir dele, e ele ainda está buscando o que é a melhor variedade para aquele local, o melhor corte também, que talvez não seja uma variedade. Não precisa ser uma variedade, pode ser um corte. A gente vem acompanhando que talvez seja melhor  isso porque, por exemplo, cabernet sauvignon dá um excelente vinho, mas às vezes falta um pouquinho de cor, de estrutura, que talvez precise de uma outra uva que dê esse suporte. Por isso que eu digo: ainda é muito novo. A grande facilidade do Nordeste, que pode produzir duas safras por ano, é que tudo é mais rápido para você trabalhar. Aquilo que nós esperamos para ver o resultado, para fazer o corte… lá no Vale do São Francisco você faz duas vezes no ano. Podem acelerar esse processo. Eu tenho me surpreendido com aquilo que se falava que o Vale do São Francisco só iria produzir vinhos jovens. Encontrei lá alguns vinhos com bastante estrutura. O Testardi da Miolo é um exemplo de que é possível fazer vinhos de estrutura naquela região. Eu estava fazendo um trabalho na Botticelli, também, degustando vinhos brancos, que não foram envasados, mas com grande potencial.

Novamente o papel do enólogo… para saber qual seria o melhor vinho.
Sim, o enólogo tem um papel muito crítico. Ele prova para buscar antes defeitos do que as virtudes. E sempre quer produzir o melhor vinho. Lógico que você tem o melhor vinho com ‘n’ preços. E nessa linha, nessa faixa de preço,  tem algumas características. Qual o melhor vinho para ti? Cabernet sauvignon? Cada vinho tem o seu momento. O vinho branco, o espumante, o vinho tinto jovem, médio e o de guarda, todos eles… não existe o melhor vinho. O melhor vinho para mim pode ser o pior para você. Nesse ponto, o paladar é único. Existe uma questão de nível de qualidade, isso é uma coisa. Agora, gosto é particular. Eu posso dizer: esse vinho é perfeito, em termos qualitativos, tem um bom aroma, um bom corpo, uma boa estrutura, tudo. Não tem adstringência, é macio. Agora, se ele não cair em seu gosto particular…

Para finalizar, o que é o vinho para você?
Eu tenho que dizer que eu tenho três ou quatro paixões na minha vida: minha esposa, minha filha, o vinho e o azeite de oliva. Quando você entra no mundo do vinho, você não sai, é um caminho sem volta. Isso entra na veia e não sai. Meu avô e meu pai têm vinhedos, mas nenhum tem cantina, só produz para consumo próprio. Mas meu pai, quando eu terminei a oitava série, ele era professor de técnicas agrícolas, ele me disse: tem uma escola que ensina a fazer vinho, topa? Topo. E aquilo, para mim, foi um resgate, poder ir lá para meu avô e dizer para ele: faz isso que melhora tua produção e assim por diante. Hoje eu volto lá na comunidade, toda vez que eu vou, me chamam: prova esse vinho, esse, mais esse (risos). Por que você acha que grandes investidores, gente que vem lá de outros setores, como o Raul Randon [morto em março deste ano], também investiu no vinho? Porque o vinho te dá prazer, te dá status que às vezes não consegue com outros segmentos, te proporciona amizades, conhecer o mundo todo. O que fica é o mundo do vinho. Por isso o vinho é fascinante. E não existe um vinho igual a outro. Você viaja o mundo todo e cada vez você vai provar um vinho diferente. Isso que fascina.

Fonte: A Tarde

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