O Fruto que arde e incendeia o paladar: a pimenta

por migracao

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Por Raul Lody


O imaginário da pimenta traz um ideal para o que é quente, para o que tem sabor decisivo e dominante, e faz arder a boca, apura os gostos, conduz as refeições, e harmoniza ingredientes.


Certamente a pimenta tem uma importante presença gastronômica nas mesas do mundo. E destaco, neste cenário, a plural e diversa mesa brasileira. Mesa que exibe desde as pimentas nativas até as pimentas secas da costa ocidental africana; e ainda a tão celebrada pimenta do reino, entre tantas que seduzem pelas cores e pelos odores.


 


As pimentas são valorizadas pela estética e pela maneira de anunciar um conceito de tempero. E assim cada pimenta realiza uma assinatura de sabor bem particular. A pimenta é muito mais do que um ingrediente. É um personagem que remete às antigas memórias mediterrâneas, onde está uma região do mundo que é marcada pelo encontro do Oriente com o Ocidente.


Também há pimentas nativas que têm uso milenar nas Américas, e pimentas do continente africano, como o “grão do paraíso”, as “pimentas da Costa”, entre tantas. As pimentas destacam receitas e mostram preferências por sabores especiais que trazem um sentimento daquilo que é quente, que é intenso, que faz arder. Pois a boa pimenta é aquela que arde, e muito.
As escolhas do quanto é picante uma pimenta são particulares. Muitos dos que gostam de pimentas têm um verdadeiro desejo de sentir fogo na boca. As pimentas estão nas receitas, nos molhos, nos acréscimos para determinar o paladar; e estão além dos pratos, pois compõem tradições culturais. As pimentas são símbolos relacionados à fertilidade, e, em especial, aquelas que têm a forma fálica. Assim, elas marcam o mundo mítico, os rituais agrícolas, determinam papéis sociais, e identificam territórios.


Dentro desse imaginário, as pimentas são feitas de coral, ouro, prata. São usadas como objetos da joalheria ritual na região mediterrânea. São normalmente objetos de uso corporal, mas também marcar espaços públicos como símbolo de proteção nas casas, nos mercados, como ocorre também com as figas, objetos mágicos desta mesma tradição mediterrânea.


Esses objetos representam maneiras de se retomar a determinado lugar, e de recuperar memórias que dão identidade e pertencimento a um grupo social.  No caso brasileiro, variadas são as morfologias das pimentas, especialmente as da categoria Capsicum, nativas, coloridas, com odores peculiares, e que mostram uma estética tropical. Elas estão nos pratos e formam um longo e amplo acervo de possibilidades de sabores à mesa, além de preservar diferentes tradições culturais.


E um bom exemplo do uso da pimenta nas tradições culturais está na comida de rua amazônica, que é marcada por pimentas odoríficas e coloridas, que marcam o imaginário tropical das florestas e particularizam o preparo do tão saboroso tacacá.
São as pimentas de cheiro que se misturam com a goma de mandioca, os camarões, o jambu, e o tucupi, receita servida na cuia para, e desta maneira experimentar esta comida que está entre o caldo e a massa, e que tem odor, estética e gosto peculiares que fortalecem os sabores de território.


A rica biodiversidade do Brasil traz um universo de pimentas com espécies nativas que fazem parte de uma longa tradição dos povos das florestas, os nossos indígenas. Pimentas que marcam culturas e traduzem a natureza experimentada no cotidiano.
São centenas de tipos que trazem sabores, curas, e que simbolicamente estão nos rituais que determinam lugares sociais de homens, mulheres e crianças. Deste modo as pimentas são mitificadas e se tornam fundamentais na organização de povos e civilizações que vivem de maneira holística na floresta.


A pimenta está no caminho dos povos nativos das Américas, como, por exemplo, os Maias, que faz mais de nove mil anos preparavam o “tchocoatl” acrescentando vários tipos de pimentas Capisium, conforme registros arqueológicos em Tehuacam, México.


Tão importante na vida cultural dos povos das Américas, e, no caso brasileiro, e, em especial, na Amazônia com os Baniwa, que foram reconhecidos pelo IPHAN (2010) como Patrimônio Imaterial do Brasil por causa do seu sistema agrícola na região do rio Negro. São centenas de tipos diferentes de pimentas que integram o complexo desta civilização nativa, com manifestações de um ampla biodiversidade.


Pimentas na vida, na saúde, nos rituais religiosos, nas relações sociais, no gênero, nas comidas, nas técnicas agrícolas, e ainda nos novos mercados de consumo, como ocorre com a comercialização da pimenta “jiquitaia”, preparada com várias pimentas frescas e secas e sal, sendo produzida pelos Baniwa.


No mercado globalizado a jiquitaia chega às mesas de diferentes localidades do Brasil, e de outros países, e assim oferece outras opções de temperos, de verdadeiras especiarias milenares da Amazônia.


A jiquitaia é considerada como de alta picância, para que assim os apreciadores dos temperos, especialmente das pimentas, possam experimentar sabores descobertos e elaborados pelos povos das florestas. Sabedoria que traz antigos sabores como novas opções para cardápios e paladares do mundo.


As pimentas recuperadas, experimentadas para traduzir um mito, para determinar um gosto, para possibilitar a comunicação com o sagrado; são preservadas na repetição de cada plantio, colheita, e assim na revelação de um povo e uma cultura.
É a comida marcando seus territórios em autorias coletivas, outras pessoais, regionais, nestas convivências cotidianas com os nossos temperos /especiarias tropicais, com as nossas pimentas brasileiras.


Fonte: Malagueta – Palavras boas de comer

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